Conto - Bruce.



Realmente era um belo animal.
Havia sido presente de aniversário dado à sua hoje ex-mulher.


Na época a chegada daquele alegre filhote havia enchido aquele lar de felicidade, como sempre ocorre quando se ganha um novo animal.
Raça cara, chamava a atenção da vizinhança quando ele o levava, já adulto, para passear nos domingos pela manhã. Ninguém ficava indiferente à sua presença, não só por seu valor, como também pela raridade, beleza, docilidade e tamanho do animal.

A esposa, na época, batizou-o de Bruce e desde sua chegada tornara-se o filho que nunca puderam ter.

Mas com as voltas que a vida dá aquele lar repleto de amor e alegria foi gradativamente tornando-se triste, melancólico e aborrecido.

Nenhum deles sabia explicar o motivo, mas chegou um certo momento em que eles mal se olhavam, e quando isso ocasionalmente acontecia, deflagravam brigas terríveis onde palavras eram utilizadas como punhais para ferir um ao outro.
Acontecimentos que acreditavam já terem sido sepultados há muito tempo retornavam à realidade e eram utilizados como armas.
A mágoa chegou a tal ponto que uma certa noite, ao retornar do trabalho, o homem cansado após mais um dia de trabalho percebeu que na casa estava apenas Bruce aguardando sua chegada.
As ultimas apunhaladas que ele desferira naquela que fora sua companheira durante tantos anos fizeram com que ela abandonasse não somente o lar, mas também o tão estimado Bruce. A dor que ela sentia deveria ser realmente gigantesca.
Um misto de alívio e tristeza tomou conta dele. Alívio por saber que não mais receberia as freqüentes apunhaladas que lhe eram desferidas. Triste ao recordar-se dos bons momentos que havia vivido naquele lar na companhia daquela mulher que havia partido.
No princípio a companhia de Bruce supria sua carência. Ele conversava com o cão e por algumas vezes chegou a permitir que o enorme animal dormisse com ele na cama. Mas com o passar do tempo ele percebeu que faltava-lhe algo. Faltavam os carinhos da ex-mulher, as conversas felizes, os planos, as fofocas, e tudo o mais que torna a vida de um casal harmoniosa e agradável.
O solitário homem, mesmo sem admitir para si mesmo, tinha esperanças de que algum dia, ao retornar do trabalho, encontraria a ex-mulher abraçada à Bruce, no sofá, como tantas vezes aconteceu.
Porém chegou o dia em que a tristeza deu lugar ao ódio. Chegou-lhe a notícia de que sua ex-mulher estava de caso com um antigo colega da época da faculdade e que, se o fato em si já não fosse suficientemente revoltante, o caso entre eles já ocorria quando ela ainda vivia debaixo do mesmo teto que ele.
Seu coração bateu acelerado, sua vista turvou-se e sua respiração tornou-se difícil. Por Deus aquela que por tantas vezes deitara-se na mesma cama que ele não estava ao seu alcance, pois se estivesse certamente algo terrível aconteceria.
Os dias foram passando. O homem antes triste e esperançoso agora tornara-se uma criatura rancorosa e mau-humorada. Nem mesmo a costumeira festa que Bruce fazia quando ele chegava do trabalho era capaz de fazer nascer-lhe um sorriso.
Ao contrário, agora Bruce era a materialização daquela mulher que traíra sua confiança. Ele representava aquela que provavelmente deveria estar nos braços daquele que certamente a desejou a todo o momento, enquanto eles eram ainda casados, e agora ela se entregava à suas carícias e provavelmente ria de sua inocência. Sem o menor remorso ele passou a desferir chutes enfurecidos naquele leal companheiro que vinha saudá-lo em sua chegada. Proferia palavras terríveis ao indefeso animal, o amaldiçoava, mesmo sem ter certeza se o peludo animal era capaz de entender o significado de todos aqueles impropérios que lhe eram dirigidos. Mas ele o fazia, sempre, todos os dias.
No caminho para casa ele já sorria, sozinho em seu carro, ao imaginar os golpes que logo mais aplicaria em Bruce, grande e inocente. Ele mal podia se conter de ansiedade.
O animal passou a se esconder em sua casinha assim que aquele homem bestial chegava, e de lá saía para se alimentar somente quando seu agressor confinava-se em seu quarto para vomitar seu ódio e destilar seu rancor. Escapava dos golpes físicos e verbais do seu dono.
Certa vez, entorpecido pela bebida, o enfurecido homem chegou em casa após o horário que lhe era de hábito. Bruce já não veio mais fazer-lhe festa, temendo ser novamente alvo das agora costumeiras agressões.
O ódio que havia em seu coração parecia, com a ajuda da bebida, ter se multiplicado infinitamente. Bruce não veio até ele, ao contrário, o ensandecido homem foi até Bruce.
Abaixando-se, o homem encarou o assustado animal. Seus olhos se cruzaram. Não era possível diferenciar o olhar do animal racional do olhar do animal bestial, os papéis pareciam ter se invertido.
Como um monstro o homem puxou violentamente Bruce para fora da casa. Submisso, Bruce deitou-se aos seus pés como implorando por clemência. Totalmente fora de si o homem passou a pisar a cabeça do animal. Os ganidos puderam ser ouvidos por toda a vizinhança, mas ela já havia se acostumado a ouvir os lamentos do pobre animal que agora era martirizado diariamente. E a agressão insana se deu até que os movimentos daquele corpo peludo cessaram.
Após finalizar seu ato terrível o homem serviu-se normalmente do jantar que a empregada havia lhe deixado, como era de costume, e em seguida foi dormir sem se importar com o enorme corpo do animal, banhado em sangue, estirado na área de serviço.
Na manhã seguinte, mecanicamente, antes de ir trabalhar, o odioso homem embalou o corpo de Bruce em um enorme saco preto de lixo e jogou-o na calçada para ser recolhido, como se nada significasse.
Horrorizada, a empregada entendeu o que havia acontecido ao encontrar o chão da área de serviço lavado de sangue e não encontrando mais o festivo Bruce.
Passaram-se os dias.
A vida daquele atormentado homem parecia ter se tornado ainda mais insuportável. O ódio que sentia beirava as margens da loucura, e ele sentia-se como uma bomba preste a explodir a qualquer momento. Não era, agora, somente a ausência da ex-esposa traidora que o atormentava, mas também a ausência daquele que por toda sua breve vida havia lhe dispensado apenas carinho e alegria, e havia ganhado em troca uma morte terrível. Seu ódio não cabia em seu peito pois não mais havia onde ele despejar sua ira, Bruce não mais estava lá à mercê da sua bestialidade.
Era madrugada. Uma leve chuva caía na cidade fazendo o sono tornar-se mais agradável. O som dos pingos nas telhas pareciam sonífero. A noite estava tranqüila.
Mesmo assim o homem acordou com os olhos arregalados ao ouvir estranhos sons vindos da área de serviço. Sons semelhantes à arranhões, como se algum animal se acomodasse na casa do falecido Bruce.
Sem entender o que se passava o homem correu até o local e ao acender a luz constatou que não havia nada naquele local. Olhou ao redor, coçou a cabeça e não conseguiu entender nada. Voltou à dormir, auxiliado pelo som das gotas de chuva.
Nas semanas que se seguiram o homem não mais teve noites tranqüilas se sono. Todas as noites ele era acordado com o estranho ruído na área de serviço.
Certo dia ele aguardou a chegada da empregada, coisa que nunca acontecia e ordenou à ela, rispidamente, após uma noite de sono mal dormida, que se desfizesse daquela maldita casa que fazia estranhos barulhos. Mesmo sem entender nada ela obedeceu.
A empregada que antes tinha gratidão e admiração por seu patrão, agora tinha medo. Terminava os afazeres para os quais era paga o mais rápido que podia e ia embora. Os vizinhos comentavam sobre coisas terríveis que ouviam na casa., à noite.
Gritos, risadas, uivos, ganidos... mesmo após a morte de Bruce os sons de origem animal estranhamente permaneciam.
Já não havia mais a casa de Bruce, ainda assim os ruídos continuavam.
O ódio, a revolta, o desejo de vingança, as noites mal dormidas... a mente daquele homem beirava a loucura.
Certa noite, ao regressar alcoolizado do trabalho, como já era de costume, retirou uma pistola da cintura e colocou-a sobre o criado-mudo ao lado da sua cama. Ficou ali, sentado, por vários minutos, admirando aquele objeto de metal que lhe despertava idéias funestas. Nova em folha, ela precisava ser estreada em grande estilo.
A mulher, aquela que o traíra. O cão, Bruce, aquele que o abandonara. A empregada, que agora o olhava com desprezo.
O sono chegou rápido e o perturbado homem dormiu mesmo sem tocar no jantar que havia lhe sido preparado. Jantar esse temperado com o mais profundo medo.
Novamente os sons na madrugada. Arranhões em alguma coisa, como se algum animal gigantesco quisesse entrar ou sair de dentro de uma caixa de madeira. Empunhando a pistola o enfurecido homem, aos berros, foi até a área de serviço disposto a pôr um ponto final naquele inferno.
Nada. O lugar estava vazio.
Lembrou-se do que havia feito com Bruce e pela primeira vez desde o dia fatídico lágrimas lhe escorreram pela face deformada pelo ódio.
Cabisbaixo ele retornou ao seu quarto certo de que não teria uma noite de sono tranqüila. Agora, não pelos insistentes ruídos que lhe atrapalhavam o sono, mas pelo remorso do que havia feito ao seu querido animal de estimação.
Que culpa tinha ele da traição da mulher? Seu coração doeu ao perceber o quanto havia sido cruel e injusto. Ele havia se tornado um monstro.
Mas ao deitar-se na cama seus ouvidos foram inundados por um som que parecia ter se originado nas profundezas do inferno. Um ruído animalesco, raivoso, ensandecido e violento invadira o quarto. Por um instante ele não soube dizer se o som vinha dele mesmo ou não. Recordou-se da noite em que pisoteou o pobre Bruce. Os sons que emitira eram como aquele que ele ouvia naquele momento.
Ao retornar à realidade o homem viu, horrorizado, um par de olhos vermelhos como lava fitando-o de um canto do quarto. Ele ensaiou apontar a já quase abandonada pistola para aqueles olhos que prenunciavam a morte, mas antes que pudesse tomar qualquer atitude sentiu alguma coisa saltar sobre ele e jogá-lo ao chão.
Um hálito quente e fétido invadiu-lhe a face e, para seu desespero, percebeu que a pistola já não mais se encontrava em sua mão. Os olhos vermelhos como o inferno estavam próximos aos seus e dentro deles o homem parecia ver refletido todo o ódio que havia invadido seu coração. Era como se todo aquele sentimento que ele nutrira por todos aqueles meses tivesse agora se voltado contra ele.
Ódio, amargura, desejo de destruir tudo e todos. Destruir aqueles que haviam lhe ferido o orgulho, haviam lhe extirpado a dignidade. Destruir todos aqueles que provavelmente riram dele, que depreciaram sua masculinidade, que comentaram jocosamente e com escárnio a atitude da ex-esposa infiel para com ele. Todos deveriam ser destruídos, sua honra deveria ser lavada.
Não conseguia mover-se. Estranhamente seu corpo estava paralisado, provavelmente devido ao horror que sentia.
Tentou dizer alguma coisa, provavelmente imploraria por sua vida, mas presas enormes como afiadas adagas se pronunciaram de uma bocarra imensa defronte ao seu rosto...
Na manhã seguinte a assustada empregada adentrou a casa, esperançosa de que o patrão que lhe causava tanto medo não estivesse em casa. Os vizinhos já haviam lhe relatado sobre a balbúrdia ouvida, mais uma vez, durante a madrugada.
Risadas, esbravejos, uivos, ganidos, estrondos...
Todo o horror se materializou na alma da obediente empregada quando, ao adentrar o quarto para arrumar a cama, ela se deparou com o colchão da cama do patrão encharcado de sangue e as cobertas todas destroçadas como se tivessem sido mastigadas.
O homem nunca mais foi encontrado, mas os vizinhos juram que até hoje, todas as madrugadas, ainda ouvem risadas, esbravejos, uivos e ganidos vindos do local, agora vazio.



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