Conto - Espelho, Espelho Meu...





- Tente melhorar a maquiagem. – dizia o diretor de cena.
- Não dá! Se pusermos mais base ela vai parecer uma boneca de cera, sem expressão! – o maquiador retrucava.

- E quanto à luz? Não pode dar um jeito?
- Ela está velha! – o iluminador dizia – Já era! Não vai colar! O tempo dela acabou, precisamos de alguém mais jovem para o papel.
As frases passaram pelos ouvidos de Lúcia Rangel, mas em nada mudaram a expressão dura no espelho. Crua e nua, sem meios termos.
- Vamos deixar para amanhã. – o diretor encerrava a discussão do outro lado da fina parede – Falarei com os patrocinadores...
A verdade revelada pelo reflexo coincidia com todas as vozes. Velha! Obsoleta! Uma diva decadente em meio às concorrentes. Tolas e fúteis, mas jovens e lindas! Apagou o cigarro pela metade e deixou o camarim, sem apagar as luzes. No carro abriu o porta luvas. O cartão saltou-lhe aos olhos como uma chama ardente.
- Lúcia... Não posso fazer mais nada! – o médico falava em sua memória – Você já fez intervenções demais, seu rosto não é o mesmo. Aceite isso!
Como aceitar? Ela não podia. Mesmo que todos os cirurgiões plásticos tivessem recusado atendê-la, era impossível admitir isso. Seu rosto era sua vida! Um ícone para milhões! Ela sabia o poder da força de sua imagem, o apelo que exercia. Tinha de haver uma forma de deter o tempo! Parar o relógio. Ou girá-lo a seu favor.
O cartão brilhava contra as luzes do painel, entre os dedos de sua mão.
- Se deseja mesmo tentar qualquer coisa, - e furtivamente a mão da lembrança estendeu o cartão – procure-a. Mas eu nunca lhe dei isso. – o médico afirmava – Nunca tivemos essa conversa.
O portão da casa simples, fora da cidade, lembrava-lhe uma cela. E o interior reforçava a sensação de prisão. Centenas de frascos coloridos a observavam com olhos cegos. Enquanto um par de íris negras sustentavam as suas, do outro lado da mesa.
- Apenas um gole, de cada vez. – a mulher baixa e morena dizia – Nunca mais do que isso. Sempre a cada sete dias. – estendeu o vidro dourado para Lúcia e essa passou-lhe o cheque pomposo.
No carro ela bebeu o líquido amargo. O fogo queimou a partir do peito. Entre terra e céu, Lúcia ardeu no inferno pela eternidade de um instante. Mas o rosto que a fitou no espelho retrovisor recompensou todos os sacrifícios.
O rosto que agora recebia elogios e flashes na mesma proporção: intensos!
- Lúcia Rangel exibe toda sua fabulosa beleza e talento essa noite, em nosso programa...
- Capa do mês da revista mais importante no mundo artístico, Lúcia Rangel...
- A diva está de volta! Uma estrela que brilha eterna...
- Lúcia Rangel, renovada... Lúcia Rangel, bela como nunca...
- Lúcia Rangel...
- Lúcia Rangel...

O cativeiro transforma homens em animais. A prisão prolongada deteriora a mente, corrói o espírito. Enfraquece as convicções e escrúpulos. E o algoz nunca se apercebe disso antes de ser tarde demais. Não vê os prenúncios do motim!
- Você está no auge. – a mulher baixa e morena falava em meio aos frascos cegos – Isso tem seu preço. E o meu é esse! – Lúcia viu as cifras subirem na proporção em que a beleza retornava a seu corpo. Vertiginosa!
E entendeu-se vítima indefesa de um eterno verdugo. Voraz e insaciável. Apenas uma dose a cada sete dias! A maneira perfeita de prendê-la, sufocá-la, arrancar tudo dela. Cada vez mais alto o preço a pagar! E Lúcia começava a duvidar da “prescrição” recomendada. Queria mais. Beleza e liberdade!
A mão de Lúcia fechou-se no cabo madrepérola da Beretta 92FS, fabricada por encomenda. E os frascos dourados desapareceram das prateleiras na mesma velocidade em que o sangue da mulher vertia ao chão, os pingos grossos escorrendo pela parede como garras. Lúcia abandonou a prisão, para nunca mais voltar!

O programa ao vivo entraria no ar em quinze minutos. Milhões de telespectadores! Lúcia ainda sentia o calor intenso do fogo, suava e arfava um pouco. Mas sabia que logo passaria. Talvez, ela pensava, a dose maior tivesse efeitos diferentes. Essa foi a primeira vez, logo estaria acostumada.  E quem sabe nem precisasse mais? Continuaria bela e linda por mais tempo. O rosto rescendendo vida e juventude.
As luzes do estúdio a faziam suar, enquanto o maquiador borrifava o pó translúcido. O produtor acenava histérico.
- No três... Dois... Um... No ar!
- Boa noite – o sorriso plastificado do apresentador fitava a câmera um – Ao vivo esta noite, para satisfação de nossos telespectadores, estamos com a presença da diva Lúcia Rangel, que vai nos falar sobre seu novo contrato multimilionário e do filme que tem arrastado legiões de fãs as salas de cinema... Uma salva de palmas para Lúcia Rangel! – a diva entrou, toda sorrisos encantados, e sentou-se – Boa noite Lúcia.
Ela tentou falar, mas a voz esqueceu o som. Queria mover a cabeça para a câmera, mas o corpo não obedecia aos comandos do cérebro. A mão que forçava o movimento tremeu, quando a levou ao rosto, e os olhos viram cada uma das fissuras, manchas e rugas que se amontoavam no lugar da pele amanteigada. Um close rápido da câmera quatro revelou aos seus olhos a própria imagem! Os cabelos que caíam em tufos como bolas de pelos felinos, a pele que escorria como gel de um pote, para depois se encolher como folhas de papel absorventes umedecidos, os sulcos que criavam curvas côncavas no rosto. Linhas que se sucediam como marcas arranhadas nas paredes dos músculos. Um rosto que envelhecia cem anos em poucos segundos!
- Meu Deus! – o apresentador levantou-se enojado.
E Lúcia também se levantou, mas as pernas velhas a traíram. A gravidade a arrastou para o tapete do estúdio e ela sentiu o próprio esmagar de ossos dentro de um saco de pele flácida. Um fio de saliva escorreu dos lábios partidos e a luz dos spots a cegaram por completo.
Vozes se elevaram, ela percebeu. Mas apenas uma martelava em sua mente, antes do apagão total.
“- Apenas um gole de cada vez... Nunca mais do que isso... E só a cada sete dias...”




Georgette Silen

Biografia: Georgette Silen é arte educadora e escritora de ficção e fantasia. Publicou diversos contos em antologias em várias editoras e lançou, em julho de 2010, seu primeiro livro solo, Lázarus, pela editora Novo Século. Em agosto de 2011 lançará, pela editora Estronho, o livro Apenas Uma Taça – Um Brinde ao Mestre Stoker, durante a Fantasticon SP.
Contatos com a autora: missgette@yahoo.com.br e twitter @georgettesilen



Um comentário:

  1. É impressionante a obsseção pela juventude, e isso não é algo novo.

    O conto é muito bom.

    http://terza-rima.blogspot.com/

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