Conto - A Folha em Branco.





“As garras do animal arranhavam portas e janelas, e um suor grudento como mel escorria de suas axilas...”
“Os dentes vampirescos brilharam a luz da lua perolada, anunciando que o fim estava mais próximo do que ela imaginava...”
“O grito agudo percorreu os quatro cantos da terra, mas não alcançou nenhum ouvido que pudesse salvá-lo da besta, meio homem meio lobo...”

Alice parou, mirando as teclas da velha maquina azulada. Amassou a folha de papel com raiva e atirou-a ao chão, onde foi fazer companhia a outras dezenas de bolas, algumas recentes e outras antigas. Levantou-se e foi à janela, fitando a lua cheia por trás dos Arcos da Lapa, zombando em silêncio mudo da aflição da escritora. Dois minutos parada ali e Alice fumou quatro cigarros, que acendeu um no outro, com três xícaras do café morno e sem açúcar da garrafa térmica branca.
Tão clara quanto o problema que enfrentava: “A síndrome da folha em branco”! A maldição de todo escritor! Uma visitante nunca bem-vinda, hóspede esperada, mas sempre passageira. Companheira indesejada, que dessa vez pareceu ter se mudado de mala e cuia para seu lado, tal era a inatividade mental de Alice. Havia tido crises como essa antes, mas nunca uma que fosse tão insistentemente irritante, absurdamente avassaladora. Toldava as idéias, deixava-a sem as palavras. Privava-a de sua força primordial: escrever.
No apartamento na Lapa, refúgio e santuário das horas críticas, ela procurava aquilo que odiava não ter: inspiração. Despediu-se da família, avisou que não a procurassem, trancou o celular desligado na gaveta e marchou para lá, prometendo só sair quando tivesse em mãos o original para entregar a editora, dentro do prazo cada vez mais estampado diante de seus olhos, como a lua. Seu editor solicitara o trabalho com recomendações de gênero e público: uma história de fantasia, com criaturas do imaginário popular, para adolescentes. Cheia de ação, mistérios, seres fantásticos e que tivesse um final inusitado, inesperado. Alice encarou o desafio rotineiro em sua carreira, um trabalho solicitado como tantos outros antes.
Voltou para a mesa com determinação. A velha Remington Rand olhava para ela. O teclado gasto e quase apagado, sem a tecla do “ç”, era sua amiga dessas horas. Alisou a peça antiga com carinho, sentindo a frieza do metal. Foi dela que Alice tirou as primeiras palavras de uma carreira de sucesso, há muito anos. Contos, novelas, crônicas, romances, ora açucarados ora apimentados, de magia e terror, tudo brotou do tac tac profundo e sonoro que vinha do bater de dedos rápidos contra o aço frio e descascado. Sempre que sua mente “travava” era atrás da velha máquina de datilografar que vinha, dispensando o moderno computador em sua casa de Petrópolis.
Alice sabia, com uma intuição aguçada, que aquela máquina antiga era mágica! Fazia brotar as sementes que não germinavam por falta do adubo correto. Da ferramenta correta. Sentou-se, atacando com dedos furiosos as letras apagadas das teclas, mas guardadas na memória em sua exata posição. Horas depois e mais bolas de papel aumentaram a babel que se instalara no chão de tacos. Os olhos ardiam a pouca luz do abajur e ela resolveu acender o interruptor. Mas quando se levantou, estalando os dedos doloridos, percebeu que não estava sozinha no cômodo desorganizado. Sombras desconexas, confusas, desenhavam formas bizarras contra a luminosidade tênue do abajur de franjas. Com olhos arregalados ela os viu, todos! A boca aberta em surpresa não conteve a pergunta que saltava dos lábios trêmulos.
- Q-Quem são vocês? – a saliva grudou-se ao céu da boca – O que estão fazendo aqui?
Das sombras eles se revelaram. Alice não sabia dizer quantos eram, estavam amontoados uns sobre os outros, baixos e altos. Mas podia ver detalhes impressionantes de seus visitantes noturnos. Havia uma figura de mulher, envolta numa mortalha clara e desfiada e que exibia a total ausência de uma cabeça. O corpo projetava os seios fartos para frente e ela parecia ver Alice, mesmo sem olhos. Ao lado dela uma criatura alta, com pelos por todo o corpo, levantava as mãos cabeludas e grandes. Não havia garras pontudas nas mãos do lobisomem e as orelhas pareciam ter sido aparadas com uma tesoura afiada. Próximo dele a figura pálida, inconfundível com sua capa vampiresca no melhor estilo Bram Stocker, mirava Alice e sorria, exibindo uma gengiva desprovida de dentes. Um por um ela os via: duendes com apenas metade dos traços faciais, elfos sem membros e gnomos arrastando um tronco sem pélvis! Gigantes a miravam sem olhos e fadas tropeçavam no tapete colorido, tentando alçar voo sem suas asas brilhantes. Um imponente mago, num elegante traje azul perolado tentava esconder o buraco em seu abdômen, que deixava o outro lado da parede visível.
- Somos os seus personagens Alice. – o vampiro sem dentes falava, a voz tolhida pela gengiva carnuda – Todos nós! Cada um surgiu de sua escrita, de suas bolas de papel amassadas. – apontou o chão – E veja o que fez conosco! Mutilou-nos, nos deixou incompletos. Somos apenas rascunhos e esboços por sua causa.
Alice custava a aceitar como realidade a visão diante de si. Balançou a cabeça e piscou, mas todos estavam lá, imutáveis. Começou a duvidar da própria sanidade quando abriu a boca para perguntar, estranhando a calma na voz.
- E o que querem? Por que estão todos aqui?
- Queremos que termine a história. – o vampiro desdentado falava como porta voz do estranho grupo – Queremos existir, ter um corpo, ter um começo, um meio e um fim. Todos os personagens merecem. E você nos deve isso! – rostos desfocados e etéreos a encaravam – Termine a história, deixe-nos existir. Estamos sofrendo. Dê-nos o que merecemos...
Alice não sabia o que dizer ou pensar à medida que os dias transcorriam. Nenhum dos “visitantes” a abandonava em momento algum. E por fim agradeceu pelo “surto esquizofrênico” que fazia enxergá-los a todos, dia após dia, escutando de suas bocas os detalhes para compor a trama. Cada linha escrita, cada capítulo encerrado e amarrado, e mais e mais as formas incompletas adquiriam cor, textura, membros e traços, deixando de serem apenas borrões. Tornando-se personagens de carne, osso, papel e tinta. Quando a última linha foi escrita, e Alice enviou original para o editor, todos desapareceram. Não estavam mais em canto algum do apartamento da Lapa. A noite de autógrafos veio e o lançamento do livro foi um sucesso absoluto de crítica e público, a mídia em peso ovacionava a inventividade da escritora carioca. Depois de um momento de crise superada, Alice foi dar adeus a seu cantinho mágico, despedir-se da Remington e pegar a estrada para Petrópolis. Girou a chave e a porta abriu-se com um rangido leve. As escuras tateou e encontrou o interruptor. Quando a claridade a inundou ela os viu, todos. Parados. Olhando diretamente para ela. Lindamente completos e assustadores. Alice sentiu um tremor repentino, mas respirou fundo.
- E agora? O que foi? – perguntou, sentindo como se tivesse engolido uma das bolas de papel amassado que ainda estavam no cesto de lixo.
Os dentes faiscantes do vampiro, que sabia agora chamar-se Yuri, relampejaram num sorriso macabro e cheio de significados ocultos. Os outros também sorriam, e algo naquela expressão fez Alice sentir frio no verão carioca.
- Muito bem Alice. Vejo que conseguiu. – o vampiro brindou com a mão vazia – Terminou nossa história, depois de tanto tempo, de tanto sofrimento. – e aproximou-se, assim como os outros – E agora podemos finalmente dar o que você merece...
As garras escuras do grande lobisomem arranharam lentas a parede lateral, provocando um som como de um giz sobre uma lousa, fino e cortante, aproximando-se do interruptor. Uma fada sobrevoou a cabeça de Alice e com um gesto fechou a porta. Os rostos a miraram com verdadeira expressão sobrenatural. E Alice viu, horrorizada, as garras negras apagarem a luz com um clic de suas unhas.
Uma miríade de íris multicoloridas, mesmo no completo escuro, avançou em sua direção...




Georgette Silen

BiografiaGeorgette Silen é arte educadora e escritora de ficção e fantasia. Publicou diversos contos em antologias em várias editoras e lançou, em julho de 2010, seu primeiro livro solo, Lázarus, pela editora Novo Século. Em agosto de 2011 lançará, pela editora Estronho, o livro Apenas Uma Taça – Um Brinde ao Mestre Stoker, durante a Fantasticon SP.
Contatos com a autora: missgette@yahoo.com.br e twitter @georgettesilen






Um comentário:

  1. Uma vez Georgette, para sempre Georgette...

    Não há como ler e não gostar! ^^

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