Conto - O Herdeiro.







E ele disse: “Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.
Mateus 4:9

           

Do alto de sua torre, Ultor observava o reino, sua herança maldita a cobrir-se de fumaça e trevas. A peste havia chegado e com ela, cumprir-se-ia enfim a promessa feita há vinte anos. Viera através de Ana de Bogna, cozinheira cujo destino sempre fora servir, aos mestres, aos servos, a quem pedisse o calor do seu corpo ou a força dos braços. Naquela noite, desviara-se dos guardas para encontrar-se com o namorado num canto escuro de um dos jardins, mas jamais chegara ao encontro, o corpo fora encontrado coberto de pústulas que estouravam e formava úlceras; delirante pela febre, ela murmurava, "não, não deixem o herdeiro me pegar, não, os seus dentes..." A ladinha repetiu-se até decidirem averiguar. Esgueirando-se para a torre, tomados de medo e raiva, os homens foram recebidos com um olhar calmo por aquele ser assombroso. As ratazanas guinchavam desesperadamente, mas as mãos finas tocaram o pelo asqueroso e elas calaram-se; pela primeira vez, alguém ouvia a voz de Ultor. "Está feito", ele disse e mais uma vez, calou-se. A partir deste dia o caos e a morte chegaram ao reino, a peste espalhara-se e já não havia lugar para enterrar os mortos, que iam sendo queimados para evitar maiores contágios. O céu tingiu-se de vermelho e um cheiro ocre espalhou-se.       

                                                                     I

            As rodas da carruagem saltavam sobre as ruas e feriam a neblina da cidade, levando para longe a prova viva de um dos maiores horrores que o homem já cometera. Na janela mais alta de seu palacete, o Conde Lars Ulrich de Rouam fechou as cortinas e voltou-se para sua nova existência, enquanto a carruagem seguia veloz em seu caminho para o interior. Angeline, sua filha, jamais seria vista novamente. A enfermidade súbita a afastara dos poucos amigos, os criados mais próximos jamais saberiam explicar o que acontecera. "Está feito", disse ao pequeno homem que o observava nas sombras.         
            Após horas de viagem sacudindo-se pela estrada cheia de percalços, a roda de madeira não aguentou a velocidade e quebrou-se, a carruagem virou-se, despencando em meios a arbustos e um barranco enlameado. Assim, os primeiros gritos da jovem mãe foram anunciados. O bebê chegara cedo demais. "Ayudame Maria", arquejava Angeline, ayudame! Entretanto, a espanhola que fora sua ama desde que dera os primeiros vagidos, tinha o pescoço estranhamente retorcido e já não poderia responder. Estava morta. Gotas de suor e tremores sacudiram o corpo enfraquecido, entanto não havia tempo para lágrimas ou pesar. A moça gritou por horas, agarrada ao braço do velho cocheiro, confidenciando-lhe em delírios sobre um homem que derramara sangue sobre seu corpo e de mãos descarnadas que a ameaçavam.
   O cocheiro benzeu-se quando viu as névoas que os cobriam repentinamente e um arrepio o percorreu quando a menina cravou as unhas em sua pele, implorando por ajuda, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." Finalmente um lamento agudo se fez ouvir, com o apoio do rude homem, o pequeno nascera. Desfalecida pela dor, a jovem mãe não viu quando recebeu o bebê enrolado em seus braços. Pedro de Aguirre era um homem prático, a roda estava imprestável, quiçá todo o veículo. Tais condições, somadas à aparência doentia da moça e do recém nascido indicavam como única solução a busca imediata por ajuda. Partiu deixando a pequena família encostada no que sobrara da carruagem. Em meio a este local desconhecido e solitário, nascia o único filho de Angeline de Rouan. O filho da vergonha e da dor cresceria sem suas benções e sem o carinho de mãe. A morte chegara com a vida.
            Não se sabe ao certo quantos dias Pedro caminhou para conseguir a ajuda que necessitara, quando os servos o encontraram, estava ferido e delirante, balbuciando sobre uma floresta maldita onde a menina os aguardava com o neto do conde. Ao longe ouviram lamentos agudos, como de um gato agonizante clamando por socorro. O corpo da jovem mãe já estava em decomposição, mas seus braços seguiam firmemente agarrados a trouxa em farrapos que lançava agudos bramidos pelo ar. O que viram aqueles homens jamais esqueceriam: o rosto desfigurado da moça apresentava-se lacerado, o cheiro da morte, mescla de sangue coagulado, enxofre e pruridos diversos empesteava o ar, espalhando-se quando a trouxa foi retirada dos braços endurecidos. Um enterro as pressas, o asco e a repugnância que o cheiro do bebê despertou marcariam seu destino; as pessoas sempre estariam afastadas do herdeiro do conde.            
            Não encontraram ama para a criança. Os poucos relatos que resistiram ao tempo e chegaram posteriormente à corte, contavam que o povo olhava com desconfiança para aquele que colhera a vida da mãe ao nascer, pois além da aparência sombria, o cheiro da morte permanecera com ele. O filho da jovem beldade não herdara sua beleza, seus traços eram degenerados e repugnantes, principalmente os olhos claros assustavam as amas, que temiam ter o leite seco para os próprios filhos, por isso foi amamentado com leite de cabra, a pele era fria e endurecida. Por ser o herdeiro do conde, em seus primeiros anos recebeu o tratamento que lhe permitiu sobreviver na zona rural. As poucas crianças o evitavam, o avô jamais o procurara, mas era saudável e crescia, apesar do pequeno horror que sentiam os que o encontravam inesperadamente, acostumaram-se a sua presença no pequeno feudo, recebiam raras visitas e aceitavam calados o destino de servir sem questionar.        

                                                                       II       

            O salão dourado reunia a nata da nobreza, que observava o homem curvado fazendo malabarismos, o olhar malicioso arrancando risadas exageradas dos cortesãos. O corpo abandonado no trono, coberto por jóias riquíssimas, e sendo acariciado por jovens beldades, o Rei Lars Ulrich de Rouam observava todos com olhos semicerrados quando um homem aflito adentrou ao salão dourado. O que dissera ao rei não se sabe, mas imediatamente o rosto apresentou a dureza que lhe era característica, a festa estava acabada.      
            Numa saleta, o garoto aguardava, observado com atenção por dois soldados e um servo rústico e de aspecto debilitado. Finalmente conheceria o avó que o mandara para tão distante. Aos dez anos, sua aparência tornara-se ainda mais assustadora, a carne da face parecia solta sobre os ossos, apesar dos músculos fortalecidos, veias saltavam arroxeadas por detrás da pele esverdeada e uma corcova se anunciava. Mas o primeiro contato do rei com Ulthor não se dera pelo olhar, fora o cheiro nauseabundo que o encontrara ainda no corredor, mistura de madeiras apodrecidas e úmidas, gengivas estragadas pelo escorbuto e o ranço das feridas mais infectas não poderiam descrever o cheiro que espalhava-se pelo castelo. "O cheiro do demônio", murmurou o rei, ao entrar na pequena sala. Todos ajoelharam-se, menos o jovem que desconhecia qualquer regra e portava-se mesmo como um pequeno selvagem. As poucas crônicas da época dizem apenas que o campônio fora duramente castigado por trazê-lo até ali, mas não houvera surpresa nos olhos do rei, apenas curiosidade e um leve tremor de lábios ao ver os olhos claros fitando-o. O feudo fora atacado na noite em que o garoto faria dez anos. Dizimados os aldeões e os simplórios senhores feudais que o abrigavam, a morte mais uma vez se desviara dele. Um dos poucos sobreviventes recebera a incumbência de levá-lo ate o reino, para que fosse decidido o seu destino. E assim foi feito.    
            Aquele era um reino rico e opulento, as colunas erguiam-se majestosas e catedrais agulhadas ambicionavam o céu. Pois em meio aquelas torres pontiagudas e imponentes, o herdeiro encontraria sua morada. Uma porta selada e a altura incomensurável o manteriam afastado dos olhares curiosos. Logo, os aposentos ao seu redor foram abandonados, pois o cheiro que o envolvia contaminava a todos. Sempre oculto nas sombras, ainda mais que no antigo feudo, fora duramente castigado no dia que ousara sair de sua morada. Não chorava nem falava, mas desenhava com avidez, pequenos carvões tornavam os olhos ainda mais brilhantes e durante horas dedicava-se a escrever estranhos hieróglifos nas paredes, entoando arremedos de canções insanas e grunhidos; emaranhadas, suas escritas confundiam-se e espalhavam-se até alturas inexplicáveis. Os servos temiam-no, desde sua chegada, ratazanas cresciam e infestavam o castelo de maneira anormal, mais de uma vez, fora surpreendido cercado por elas, em guinchos, parecendo comunicar-se com os animais. O primeiro acidente aconteceu com o jovem Thiago, ao levar a comida ao herdeiro – assim chamado as escondidas pelos criados – ao ser surpreendido guinchando com suas mascotes, lhe dirigira um olhar tão feroz que o menino voltara correndo para a cozinha, recusando-se a seguir as ordens para que voltasse. Não se sabe como, mas naquela noite, ardeu em febres, delírios e na manhã seguinte, o corpo sem vida apresentava lacerações como se pequenos e pontiagudos dentes o tivessem ferido. Todo sangue fora retirado do seu corpo franzino.

                                                                       III

            O rei seguia indiferente, acumulando riquezas e amantes, de suas guerras era sempre o vencedor, um império estava se formando e sob a égide do castigo e da virulência, recebia obediência cega. No entanto, entre as gentes menores do reino, corriam boatos. Outrora havia no reino um rei justo e pacífico, cuja morte inesperada, assim como dos três sucessores imediatos despertara desconfianças, mas nada fora provado e assim Lars Ulrich de Rouam tornara-se o novo e tirano rei. Os murmúrios sobre a súbita ascensão cresciam junto com a insatisfação do povo e dos nobres, estes, manipuladores de segredos, encontraram em um antigo médico da corte caído em desgraça, elementos para vingar-se do novo rei. E assim a historia deste estranho personagem começava a esclarecer-se, à medida que a repugnância em relação a ele crescia.           
            Em troca de algumas moedas de ouro, entregara este médico um pequeno diário pertencente ao seu falecido pai, servo das sombras que fizera junto ao rei, um pacto demoníaco. Ulthor, por toda repugnância que despertara, era de fato um herdeiro, mas não um príncipe herdeiro da terra, era um herdeiro do inferno, era um maldito, o filho do incesto e da decadência, a prova viva da maldade e da ambição, o herdeiro do demônio, cuja primeira vítima fora aquela Angeline morta aos 14 anos, seviciada pelo pai em uma missa negra. Entregue a estranhos e profanos rituais, fora escolhida pelo parricida para abrigar o corpo daquele que ficaria conhecido por todos como o herdeiro. Em troca da pureza de sua filha, tornara-se o novo rei, com poderes grandiosos, não oferecera somente a sua alma e de todos do seu reino para quando o senhor das trevas fosse cobrar o preço, oferecera o ventre de sua única filha para abrigar aquele que seria o primeiro de muitos filhos do demônio em terra, seres tão malignos e bestiais que trariam consigo a doença nas unhas e nos dentes, seres que carregariam consigo todos os odores do inferno e teriam como missão colher as almas para o reino de seu verdadeiro pai, um demônio tão antigo quando os elementos tomara o corpo de Lars Ulrich de Rouam para plantar a semente do mal naquela noite nefasta. E desta semente nascera Ulthor, cujos traços degenerados, os dentes apodrecidos e pontiagudos adornados por uma carne flácida e pútrida completavam o quadro terrificante. Horrendo e forte, todas as noites escalava as complexas torres para ter acesso a um pequeno balcão, onde, cercado por ratazanas, observava a vida no reino.    
            No entanto, quando o segredo foi descoberto, trouxera com ele o preço acertado, de nada adiantara aos inimigos do rei conhecer tão hedionda verdade, pois em dez dias, Ana de Bogna fora atacada e o horror corporificara-se, lamentos e mortes não poupavam ninguém; a fumaça espalhava o constante odor da morte. Era chegada a hora da cobrança. O fim de Rei Lars Ulrich de Rouam fora inesperado, ao ver a decadência do reino e de seus súditos, lembrou-se da promessa feita ao demônio. Ele então não acolhera e criara o filho da besta, aquele nascido de sua própria filha? Seria mesmo este o fim de seu reinado, não fora ele um servo fiel? Com estes pensamentos, seguiu a procura de Ulthor, mas ao entrar na cela úmida, escutou apenas um grunhido; virou e deparou-se com uma enorme ratazana, os olhinhos brilhando no escuro, enfurecido, chutou o animal imundo, mas sentiu nas pernas que algo o roçava, era outra, ainda maior; gritou pelos criados, mas seguindo suas próprias ordens, aqueles se mantinham afastados dali durante a noite. O rei caminhou em direção à porta quando seus pés tropeçaram em outra ratazana, os guinchos aumentaram quando caiu pesadamente ao solo e foi lentamente cercado pelos animais. Exibindo dentes agudos e ferozes, avançaram sobre ele, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." seus gritos percorreram inutilmente os corredores e salas vazias. O reino dourado chegava ao fim ao som de guinchos e dentes mastigando com ferocidade.

            Do alto de sua torre, Ulthor sorriu, virando levemente o pescoço para aquele que havia sido seu progenitor terreno, depois voltou a observar o reino. As agulhas enegrecidas pela fumaça apontavam para o alto como se pedissem por socorro, mas a fumaça e as trevas cobririam a luz por muito tempo. O novo reino se estabeleceria por séculos.

Fim?



Tânia Souza

Biografia: Tânia Souza nasceu em Mato Grosso do Sul, guria descalça no chão da vida descobriu-se poesia. Na Universidade, a faculdade de Letras desvendou: paixão crônica por Literatura. Ofício? Professora, mulher, menina, poeta. Tem no inquietante o seu tema favorito. Escreve poesias, crônicas e principalmente, literatura fantástica na vertente terror. No entanto, gosta mesmo é de escrever, inventar, recriar, imaginar, de brincar com palavras e deixar que um universo, de sombra ou delicadeza, se manifeste inesperadamente no papel. Apenas alguém que escreve para poder respirar.






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