Conto - O Guardião do Sheol.

contos de terror

O Guardião do Sheol

1


Domingo, 02h50min.




As viaturas policiais, com seus giroflex ligados, se aglomeravam diante do tradicional clube social onde acontecia a festa de formatura do curso de Direito de uma conceituada universidade federal. Os policiais tentavam, a todo custo, por ordem no tumulto gerado pelos formandos, familiares e convidados que se atropelavam para ver o corpo estirado no estacionamento sobre uma gigantesca poça de sangue, atrapalhando o trabalho da perícia.

O cadáver pertencia a uma mulher loira, jovem e bela, mas que agora não passava de um amontoado de carne inerte, cuja condição deplorável intrigava sobremaneira os peritos encarregados. Aparentemente, a vítima havia sido, de alguma forma inexplicável, literalmente rasgada de dentro para fora, na altura do peito, onde restava uma imensa cavidade aberta através da qual era possível vislumbrar os órgãos internos da moça.

Embora a arma do crime não tivesse sido localizada, havia um suspeito: o rapaz de olhar perdido e feições abaladas que era mantido sob custódia, isolado da multidão para evitar que fosse linchado. Um investigador da polícia civil o interrogava.

— Vamos lá, garoto! Você já está bastante encrencado, de modo que omitir a verdade só piorará as coisas para o seu lado! Eu vou perguntar pela última vez: o que aconteceu aqui?

O rapaz encarou o policial com os olhos vermelhos, marejados de lágrimas. Respirou fundo e, munindo-se de coragem, destrinchou a sua versão dos fatos...

2

Sábado, algumas horas antes...

Após a cerimônia de colação de grau, os formandos, parentes e convidados se dirigiram para o clube onde seria realizada a festa de formatura.

Raúl entrou no salão com um sorriso de vitória estampado na face. Afinal, a despeito de todos os desafios que tivera de enfrentar na vida, ele se formara. Órfão de pai e mãe, Raúl acabou sendo criado numa casa de triagem do governo. Aos dezoito anos, porém, foi solto nas ruas, com uma mão na frente e a outra atrás. Campeou um emprego de garçom em uma churrascaria, onde trabalhou duro para pagar os estudos. E eis que agora ali estava ele: o mais novo advogado do Brasil.

Raúl não tinha convidados nem familiares na formatura, mas ele decidira curtir a festa assim mesmo. Planejara beber todas, dançar até cair e se divertir com os demais formandos até o sol raiar, posto que havia terminado com a sua namorada duas semanas antes.

Pouco mais de uma hora se passou, quando após outro drink, o rapaz foi puxado pelos amigos para a pista de dança. Foi neste momento que ele reparou na loira nada discreta que o observava atentamente do extremo oposto do salão. A garota era deslumbrante, linda e carismática. Usava um vestido curto e preto que realçava as suas curvas, deixando as pernas bem torneadas visíveis.

Ela o cumprimentou com um aceno de cabeça e sorriu.

Raúl perdeu o fôlego. E, sem jeito, respondeu ao cumprimento, tentando se lembrar, em vão, de onde a conhecia. Depois de algum tempo, o rapaz chegou à conclusão de que nunca a vira antes. Devia ser convidada de algum formando, o que era estranho, visto que a moça se encontrava isolada, num canto à parte de todos os demais presentes.

Ela se aproximou, fazendo o coração do jovem disparar. Parou diante dele, no meio da pista, e começou a dançar de forma discreta, porém sedutora. Os amigos de Raúl prontamente se afastaram, deixando os dois sozinhos, no exato instante em que a banda passou a tocar uma balada romântica. Desinibida, a garota abraçou Raúl, passando as mãos pelo pescoço do rapaz, que por sua vez, não se fez de rogado e aproveitou o momento para se aconchegar juntinho ao escultural corpo da loira. Cochichando baixinho um ao ouvido do outro, eles se apresentaram e conversaram sobre diversos assuntos, na maioria amenidades, até que finalmente rolou o primeiro beijo, um verdadeiro “amasso” de tirar o fôlego.

Ao colar seus lábios nos de Kelly, Raúl sentiu as pernas fraquejarem como se tivesse as forças drenadas pelos lábios carnudos e sensuais da garota. Mas ela o sustentou de pé, afastando-se subitamente dele e convidando-o para saírem da pista de dança. De mãos dadas, os dois se deslocaram até um sofá vazio, num canto escuro e reservado do salão, onde permaneceram durante a maior parte da noite trocando carícias e “amassos”.

3

Domingo, por volta de 01h30min...

A sessão “amassos” prosseguia arrebatadora. Raúl sentia-se no céu, com a plenitude das realizações o abraçando naquela gloriosa noite. Não bastasse ter realizado o sonho de formar-se advogado, ele também acabara ficando com a gatinha mais fogosa e sensual da festa.

Todavia, como nada é eterno, de uma hora para a outra, tudo mudou.

De repente, Kelly afastou-se assustada, olhando em volta como se tivesse visto um fantasma.

— O que foi? – Raúl indagou surpreso, voltando-se para trás e deparando com um sujeito estranho e mal encarado, enfiado em um sobretudo surrado de couro, que destoava com o ambiente fino e elegante e, principalmente, com o forte calor que fazia. Mas não foi isso que perturbou o formando, e sim o fato de que o dito-cujo os observava insistentemente do outro extremo do salão.

Kelly pareceu não ter visto o homem. Era como se olhasse através dele e só Raúl fosse capaz de vê-lo.

— Nada. Tive uma sensação ruim, só isso. – ela respondeu, disfarçando o pânico inexplicável que subitamente a possuíra. – Que tal sairmos um pouco para pegar um ar? Está muito abafado aqui dentro...

Raúl concordou. E quando se virou novamente, o sujeito mal encarado não estava mais lá, de modo que, por alguma razão desconhecida, ele resolveu não mencioná-lo para Kelly.

Os dois deixaram o salão e foram direto para o estacionamento do clube, por sugestão da garota, que deixou transparecer a intenção de avançarem mais um passo no relacionamento. Com a libido a ponto de explodir e dominando os seus pensamentos, Raúl só conseguia pensar no ato sexual que culminaria no ápice daquela noite mágica, sem se importar com as prováveis consequências e as indispensáveis precauções que a situação requeria.

Àquela hora, o estacionamento encontrava-se repleto de carros, mas vazio de presenças humanas. Eles logo encontraram um canto isolado e escuro, capaz de lhes proporcionar a privacidade de que necessitavam. Raúl mal podia conter-se de tamanha excitação e desejo, tanto que não foi sequer capaz de perceber a sutil mudança no olhar de Kelly, que de apaixonado passou a sombrio.

Quando Raúl se deu conta de que algo estava errado, já era tarde demais...

A garota subitamente adquiriu feições sinistras, no que o seu corpo todo começou a se retorcer, rasgando-se ao meio como se tivesse sendo cortado em dois por uma espécie de motosserra invisível. Num átimo de segundo, a bela e atraente loira cedeu lugar a uma criatura demoníaca que cresceu acima de Raúl e o envolveu em uma teia de sombras, impossibilitando qualquer reação por parte do atônito rapaz. O corpo humano e despedaçado da loira caiu aos pés de Raúl, enquanto ele era agarrado e imobilizado pelo espectro nebuloso.

— Vocês humanos são tão fáceis de manipular – o demônio rugiu com voz grossa e estridente.

Aproximou a bocarra deformada da boca de Raúl e, ato contínuo, passou a sugar a energia vital do rapaz. Raúl sentiu uma fraqueza avassaladora, seguida de fortes tonturas, pulsação acelerada, pânico e perda parcial da capacidade de raciocínio.

O rapaz estava prestes a perder a consciência, quando um grito ecoou na noite e, pelo canto do olho, ele vislumbrou algo que, não fosse pelo bizarro da situação que vivia, teria deixado-o ainda mais perplexo.

Saltando por cima dos veículos estacionados, vinha o tal indivíduo mal encarado que ele avistara na boate poucos minutos atrás. Aquela poderia ser uma visão normal, não fosse pelo simples fato de o sujeito portar uma poderosa espada flamejante na mão e possuir um espantoso par de asas emplumadas que, totalmente abertas, ocupavam o espaço de dois carros cada uma.

O demônio soltou o rapaz e, urrando de ódio e frustração, desembainhou uma comprida espada de sombras, partindo para o confronto.

Atordoado e muito fraco, Raúl conseguiu sentar-se de costas para o muro que delimitava a propriedade, de onde observou a violenta batalha que passou a ser travada entre as duas criaturas sobrenaturais. Os entrechoques das espadas produziam faíscas que maculavam a escuridão da noite. Os golpes eram duros e calculados, mas ambos os contendores eram excelentes guerreiros. E, somente depois de um bom tempo e muita luta foi que o anjo finalmente conseguiu, num movimento preciso, desarmar o adversário. Com um gesto ensaiado, o celestial produziu uma enorme esfera de luz brilhante na palma da mão, arremessando-a, em seguida, de encontro ao inconformado demônio. A esfera luminosa atingiu a criatura infernal, em cheio, aprisionando-a em seu interior.

Só então, o anjo virou-se para Raúl, dirigindo-lhe a palavra:

— Não se preocupe. Você vai ficar bem... Por sorte, eu cheguei a tempo de impedir que o demônio sugador o despojasse de uma quantidade letífera de sua essência energética.

— O-obrigado, mas quem é você? – Raúl esforçou-se para se fazer ouvir, sem tirar os olhos da esfera luminescente com o espectro aprisionado dentro. – E o que foi isso tudo?

— De tempos em tempos, o Sheol, ou Inferno, abre os seus portões para receber novas almas condenadas e, eventualmente, alguns demônios inferiores se aproveitam disso para escaparem. Então nós, os Guardiões do Sheol, somos acionados e enviados para a Terra com a finalidade de persegui-los e aprisioná-los novamente. Contudo, só podemos fazê-lo quando eles abandonam os corpos terrenos usados como disfarces, assumindo as suas formas originais, o que só acontece no momento em que estão sugando a energia vital dos mortais.

— O que teria acontecido comigo, se você não tivesse chegado a tempo? – Raúl perguntou, a um fio de voz.

— Ele teria se alimentado da sua energia vital até não restar mais nenhum vestígio dela, levando-o à morte, para depois se apossar do seu invólucro carnal até encontrar uma nova vítima. – o alado respondeu, guardando a espada na bainha. – Agora preciso ir. Tenho uma entrega para fazer no Sheol.

Dizendo isso, o anjo virou-se, abriu as asas e alçou voo, arrastando consigo a esfera luminosa com o demônio recém capturado.

Ainda recostado no muro, Raúl observou a figura alada sumir no horizonte. Então, não aguentando mais, ele desmaiou ao lado do corpo sem vida da jovem que um dia se chamara Kelly.

4

Domingo, 03h20min.

— Você realmente espera que eu acredite nisso? – o policial encarou Raúl, com uma expressão nada amigável.

— Não. Mas é a verdade... – respondeu o rapaz, com o olhar distante.

— Vamos ver o que o juiz vai dizer sobre isso. – o policial civil encerrou o interrogatório, prendendo ambos os pulsos de Raúl em um par de algemas, no que conduziu o rapaz para a viatura mais próxima.

Ao deixarem a cena do crime, eles passaram pela caminhonete do IML, que permanecia estacionada bem no centro da confusão. Enquanto os funcionários recolhiam o corpo destroçado de Kelly, sob a constante vigilância dos curiosos de plantão – que não arredariam o pé dali até tudo se resolver –, Raúl suspirou desanimado, desejando, do fundo da alma, que o demônio tivesse conseguido o seu intento. Pelo menos, se tivesse morrido, ele não precisaria ter de conviver o restante dos seus dias com aquela história maluca e inverossímil.



Moral da história: preste o máximo de atenção a todos com quem você se relaciona. A pessoa que você menos imagina pode ser um fugitivo do Inferno, cujo objetivo é sugar a sua energia vital e depois se apossar de seu corpo...


contos de terror

Márson Alquati

Biografia

Márson Alquati – Gaúcho, graduado em História pela Universidade Anhanguera, profissionalmente atua como Técnico Tributário da Receita Estadual do Estado do RS e, nas horas vagas, se diverte escrevendo histórias de literatura fantástica. Possui contos publicados em diversas antologias nacionais.
Autor dos consagrados romances:
A GUERRA DOS ANJOS [Giz/2009]
SOB O DOMÍNIO DAS SOMBRAS [Giz/2010]
O DESTINO DOS ESCOLHIDOS [Giz/2011]
“SANGUE DE ADÃO” [Literata/2014]

3 comentários:

  1. Fico muito honrado em ter meu trabalho tão bem divulgado em seu magnífico blog, Oscar. O Prisioneiro da Eternidade é um excelente veículo de propagação da literatura nacional de terror e suspense para o Brasil e o mundo. Parabéns por esses dez anos e que venham muitos outros aniversários... Abração!

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  2. Que conto show... adorei!!
    Li com meu filho, as partes q ele podia ouvir, claro!
    Ambos gostamos, e ele ficou aqui imaginando as cenas da batalha..... mto bom!!
    Forte abraço.

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  3. Fico extremamente honrado por ter meu trabalho divulgado em tão importante veículo de propagação da literatura nacional de suspense e terror, como é o "Prisioneiro da Eternidade". Parabéns pelos dez anos de existência do blog/site e que venham muitos outros aniversários... E que possamos sempre, em cada um deles, contribuir com a nossa parte para as merecidas comemorações. Abração!

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